Notre Dame e o Recife

“A cidade “inchou” como disse Gilberto Freyre. Quais os sonhos e os mitos que sobrevivem a essa avalanche?”

Acompanhando o noticiário sobre o terrível incêndio da catedral de Notre Dame em Paris, no mês passado, chamou-me a atenção a reação emocionada dos franceses à tragédia. Mais impressionado ainda fiquei ao ver que vários deles, a começar pelo próprio presidente Emmanuel Macron, disseram algo do tipo: “uma parte de nós queimou também!”.

Ao ver aquilo, lembrei imediatamente da frase do sociólogo Francisco de Oliveira (que foi superintendente-adjunto da Sudene na época de Celso Furtado) referindo-se ao Recife: “Uma cidade é sonhada, é mítica ou não é cidade.” O que me leva a concluir que as cidades queridas, porque sonhadas, são míticas.

Lembrei também de que quando Caetano Veloso veio ao Recife, em 2003, receber na Assembleia Legislativa o título de cidadão pernambucano, disse textualmente: “Pernambuco entrou na minha vida aos 4 anos de idade através de uma canção de Capiba. Botei o nome de minha irmã por causa dela. Nós de lá do interior da Bahia olhávamos o Recife como o mundo olhava para Paris.”

Essa época referida por Caetano era 1945. Três anos depois, em 1948, outro “estrangeiro”, argelino, o escritor Albert Camus, disse da cidade: “Positivamente, gosto do Recife, Florença dos Trópicos, entre suas florestas de coqueiros, suas montanhas vermelhas, suas praias brancas.” Mais de meio século antes, um dos mais ilustres dos recifenses, Joaquim Nabuco, disse: “O Recife, como Veneza, é a cidade que sai da água e que nela se reflete, é uma cidade que sente a palpitação do oceano no mais profundo dos seus recantos.”

Paris, Florença, Veneza e nem precisava tanto… Certamente nós mesmos não nos olhávamos como cada uma dessas cidades icônicas mas, com certeza, naquelas épocas, nos víamos bem melhor do que nos vemos agora. O que foi que mudou?

A resposta a essa pergunta, com certeza, daria ensejo a inúmeras dissertações de mestrado mas arrisco um palpite: a explosão populacional pela qual a cidade passou no Século 20. Só para ter uma ideia: a população duplicou de cerca de 500 mil habitantes, em 1950, para mais de 1 milhão em 1970. Hoje, a população está em torno de 1,6 milhão. A cidade “inchou” como disse Gilberto Freyre. Quais os sonhos e os mitos que sobrevivem a essa avalanche? Precisamos resgatá-los para evitar que queimem sem nem mesmo nos darmos conta disso.

*Artigo publicado na edição 158 da revista Algomais (www.algomais.com)