A bicicleta na calçada

Uma regra básica da democracia é a de que o direito de um não se sobrepõe ao direito do outro
Voltava eu dia desses pela Rua do Entroncamento, no sentido subúrbio-cidade, de uma caminhada matinal quando, andando próximo ao meio fio na calçada dos fundos do Sítio Trindade, vejo à frente, obstruindo completamente a ciclofaixa, uma carroça dessas bem altas que colhem papel e papelão pelos lixos da cidade.
Pensava no insólito da situação de travamento integral da mobilidade local (os carros parados na via e a carroça na ciclofaixa) quando sinto um vento passando, súbito, pelo meu “pé d’ouvido” esquerdo, como diria meu pai. Era uma bicicleta que, vindo pela ciclofaixa atrás de mim, viu a carroça, subiu a calçada, passou zunindo pelo meu lado e voltou à ciclofaixa, depois que ultrapassou a carroça. Após o susto e de me congratular com a sorte por não ter me deslocado para a esquerda no instante exato da veloz ultrapassagem (se tivesse feito isso certamente estaria escrevendo este artigo do leito de alguma recuperação traumatológica, se é que já estivesse em condições de escrever alguma coisa…), tirei uma foto da carroça parada na ciclofaixa e postei no Twitter e no Facebook com um texto do tipo: “por causa disso, quase ia sendo atropelado agora por uma bicicleta na calçada”. Veio uma resposta quase imediata que dizia algo mais ou menos assim: “o ciclista tinha que fazer isso mesmo ou iria correr o risco de ser atropelado por um carro”.
Imediatamente me lembrei de uma passagem da excelente autobiografia do filósofo inglês Bertrand Russel referente a uma época em que ele resolveu fundar uma escola. Uma vez, vendo um aluno bater em outro menor, perguntou porque ele estava praticando aquela covardia. Resposta: porque como os maiores batiam nele, era natural que ele batesse num menor do que ele. Ou seja, para não correr o risco de ser atropelado por um carro na rua, é “natural” que o ciclista coloque o pedestre em risco de ser atropelado por ele na calçada.
Há alguma coisa de muito errada neste tipo de pensamento. E digo isso na condição de defensor intransigente do direito dos ciclistas e de ter sido um dos primeiros “cicloativistas” do Recife (há 35 anos comprei uma das primeiras “bicicletas de corrida” da cidade e ia e voltava nela da João de Barros, onde morava, até a Faculdade de Arquitetura na Cidade Universitária para assistir aula).
Uma regra básica da democracia é a de que o direito de um não se sobrepõe ao direito do outro e o pedestre tem o direito líquido e certo de andar em segurança na calçada. Precisamos de cidades menos conflagradas e mais respeitosas. Lugares bons para viver onde os direitos de todos sejam respeitados, no caso os do pedestre, o elo mais frágil da cadeia da mobilidade. Não podemos desconsiderar isso sob nenhum motivo nem mesmo sob o nobre pretexto do sagrado direito dos ciclistas.
*Artigo publicado na edição 91 da revista Algomais (www.revistaalgomais.com.br).